De quê são feitas as memórias?

“…Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva”

( Rutger Hauer como Roy Batty em Blade Runner - O Caçador de Andróides, 1982, dir. Ridley Scott)


Ainda que seja apaixonado por cinema e pela experiência de ir ao cinema, minhas maiores lembranças com filmes são das idas semanais à locadora.

Quando pequeno, pegava repetidamente clássicos da minha infância, como Como o Grinch Roubou o Natal, Space Jam - O Jogo do Século, uma animação das Tartarugas-Ninja que não lembro o nome e, no período, o filme que marcou uma virada em minha vida, Star Wars - Episódio 1: A Ameaça Fantasma - um CD duplo que nunca mais vi, com um jogo para computador, em flash, provavelmente, dentro -, uma paixão que nunca mais me deixou - algo que as produções recentes insistem em tentar.

Quando mais “velho”, talvez em torno de 12 anos, passei a tentar consumir produções mais complexas. Foi a partir desse momento em que assisti pela primeira vez a Blade Runner - O Caçador de Andróides e 2001 - Uma Odisséia no Espaço, alugados de uma só vez e, claro, não finalizados - não tive paciência, compreensível. Foi a partir de uns 13 anos em que embarquei de fato em uma cinefilia, já até escrevia neste blog, inclusive - nascido à quase uma década, no longínquo ano de 2014. A essa altura já havia assistido ao inesquecível e, possivelmente, meu filme favorito, Lawrence da Arábia, de David Lean e também conseguido ultrapassar filmes de Stanley Kubrick, como Laranja Mecânica.

Mas algo de que sinto saudades do período era o ato de entrar na locadora e ver as capas dos filmes em destaque, olhar ao redor da loja e ver todas aquelas prateleiras, divididas por gênero - incluindo uma especial, a de Clássicos, que comportava qualquer filme feito até antes dos anos 2000, curiosamente -, e me aventurar lá até escolher o que levar para casa. Foram nesses anos em que mais peguei filmes em que me lembro de não ter entendido nada, mas sabendo de que se tratava de algo grandioso, e que merecia ser revisitado, em algum momento.

Certo dia, passo pelas portas da entrada da locadora que frequentava e vejo na prateleira de Lançamentos uma capa que me marcou, e marca até hoje: um homem adulto encarando as lentes banhando-se em uma cachoeira de sangue. O título, O Som ao Redor. Já lia sobre cinema na época para reconhecer aquele título, sabia de que se tratava de um filme premiado. Aluguei, era um Blu-ray. Cheguei em casa e o coloquei na TV. Terminei estranho. Não entendia o porquê da aclamação, não acontecia nada o filme inteiro. Mas, por algum motivo, sabia que voltaria a vê-lo algum dia. Isso aconteceu alguns anos depois, graças a um presente de uma namorada. Abri a caixa e lá estava ele, o filme-da-capa-com-o-homem-na-cachoeira-de-sangue. Quando o assisti de novo, já era adulto, foi uma experiência completamente diferente, o filme havia acontecido diante de meus olhos, o que antes pareciam ser cenas sem sentido eram momentos cheios de significado, permeados pela História, presente e passado.

 O filme nunca mais foi o mesmo, nem a minha vida. 

Então, assistir à Retratos Fantasmas, o novo filme de Kleber Mendonça Filho, é, por isso, uma experiência, é um retrato da História, do tempo, de sua vida, do Brasil. 

A memória está presente em seu cinema de diversas formas. Seja pelas ruinas de um antigo cinema que vemos em O Som ao Redor, os móveis carregados de lembranças da casa de Sônia Braga em Aquarius ou o armamento retirado do museu da cidade pelo povoado em Bacurau, a memória não está somente sempre presente, mas como ela conduz a história, move os personagens.

Em Retratos Fantasmas esse personagem é o próprio Kleber, que nos guia através de imagens de arquivo e filmagens, desde os anos 60 até mais atuais, mostrando as mudanças causadas pelo tempo, pelas pessoas, momentos que não voltam mais e que permanecem, capturados pela lembrança daqueles que permanecem. 

Nostalgia, amor, melancolia. Os afetos são movidos sob a mediação de KMF para nos transportar para Recife, em um túnel do tempo, passando por sua relação com a cidade, seu bairro e locais importantes de sua vida, principalmente os cinemas, muitos deles ou fechados, corroídos pelo tempo, ou passando por um processo de mutação causada por mãos humanas. 

Histórias, cenas do cotidiano, causos repentinos e até mesmo os efeitos do tempo que marcaram literalmente fotografias ou filmagens, tudo nos é apresentado no filme como um recorte de um tempo que não volta mais, e nem precisa, pois estarão eternamente armazenados não somente em arquivos digitais, mas nas mentes de cada um de nós.

É o poder do cinema.


Por: Victor Braz


Comentários

  1. Belas memórias e reflexões. Vou assistir o filme. Obrigado.

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  2. Que delícia entender que algo nos arrebata dessa maneira!

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