Oppenheimer, de Christopher Nolan - Uma análise: Parte 1

Segundo a mitologia grega, o titã Prometeu roubou o fogo dos deuses e apresentou-o à humanidade. Esse ato de benevolência, claro, foi acompanhado de uma punição: por ordem de Zeus, Prometeu foi acorrentado em uma montanha onde, dia após dia, por gerações, uma águia devorava seu fígado, que se curava todas as noites. 


Essa referência não é minha, obviamente. Além de estar no título do livro que o inspira - Oppenheimer: o mito e a tragédia do Prometeu americano, lançado aqui no Brasil pela editora Intrínseca -, o roteiro de Christopher Nolan, Kai Bird e Martin Sherwin abre este paralelo entre a história de J. Robert Oppenheimer e o Mito de Prometeu já na abertura do filme, que, ao contrário do que se pode parecer, não é sobre a história da criação das bombas atômicas que atingiram Hiroshima e Nagasaki em 1945, o ponto final da Segunda Guerra Mundial, mas sim tem nela um claro ponto de interesse, e é dela que saí a grande discussão: o que nos impede de nos destruirmos? Além de, é claro, como fica a pessoa responsável por encabeçar o desenvolvimento do meio para essa destruição?

Esse ponto é muito bem desenvolvido e apresentado no filme que é, sem a menor sombra de dúvidas, uma Experiência de cinema fenomenal - com E mesmo. Mas isso na primeira parte do longa. Na segunda, em que nos concentramos efetivamente no interrogatório de Oppenheimer para uma comissão do governo, intercalada à sabatina do senador Lewis Strauss - o personagem de Robert Downey Jr., que protagoniza os segmentos em preto-e-branco, visto no trailer -, além de marcar a passagem para um filme-de-tribunal propriamente dito, se concentra em desenvolver uma dinâmica herói-vilão entre esses dois personagens. 

Nesse sentido, proponho-me aqui a fazer uma análise em três segmentos, sendo o primeiro concentrado nos aspectos técnicos, o segundo na primeira parte do filme e o terceiro, veja só, na segunda parte - ambas tendo possíveis spoilers.


Parte 1 - Christopher Nolan é meu pastor, e nada me faltará

Estou sentado em minha cadeira olhando para uma imensa tela, perfeitamente centrado. Nada tira meus olhos da tela.

Tensão no filme. A música começa a acelerar. Personagens começam a se preparar. 

Silêncio. Na tela e na sala. Estou praticamente me segurando nos braços da poltrona. 

Um clarão. Os personagens, eu, certamente outras pessoas na sala, todos hipnotizados, vidrados. Permanecemos assim um pouco. 

De repente, um estrondo, explosão. Um barulho alto domina a sala e praticamente sou jogado para trás na poltrona.


Oppenheimer, o novo filme de Christopher Nolan, é não somente uma “Experiência de cinema fenomenal” como disse na introdução, mas como uma excelente definição de um cinema cerebral e de sensações, o meu tipo de filme favorito, que junta uma história bem desenvolvida e narrada e que leva ao espectador a senti-la, produzindo sensações através da linguagem do cinema. 

Por exemplo, a música. Colaborador frequente do diretor, Hans Zimmer esteve envolvido diretamente na trilha sonora de seis projetos de Nolan, a trilogia Batman, A Origem, Interestelar e Dunkirk. Em todos os casos, em especial Interestelar, a trilha sonora não somente complementa a cena, mas dá seu tom, faz parte da narrativa. Quer outro exemplo? A montagem, a edição das cenas e sua ordenação. Elas não somente formam o filme como o assistimos, mas o conduzem e, em certos casos, são o próprio filme em si, como é o caso de Following, a estreia de Nolan na direção de longas-metragens - não posso falar de Amnésia, pois não o assisti, erro meu, eu sei. Nessa obra temos uma montagem não-linear, quase um quebra-cabeça, o que obriga a espectadora, ou espectador, a saber o que vêm primeiro, onde começa e termina. Um exercício interessante.

Agora, voltando. 

Seu segundo projeto baseado em uma história real, o primeiro foi Dunkirk, de 2017, também passado durante a Segunda Guerra Mundial, Oppenheimer é um drama histórico e que marca um desafio para Nolan: sua primeira narrativa centrada em um estudo de personagem. Desafio porquê as personagens nos filmes do diretor são muitas vezes tratadas como personagens, e não pessoas, tem o dever de levarem coisas a acontecerem, são o motor da narrativa, cujo ápice são os acontecimentos - o drama da família de Interestelar é o que leva a história a andar, mas não é um ponto central, por exemplo. 

Nesse sentido, considero errôneo encarar seu novo filme como a história da bomba atômica e suas consequências, até porque ela representa uma parte do longa. O objetivo do roteiro é, numa primeira parte, a trajetória do físico teórico J. Robert Oppenheimer, desde seus estudos na europa até sua mudança de percepção diante da criação da bomba atômica, e, na segunda, seus embates contra o governo diante da possibilidade da criação de uma super-bomba de hidrogênio e a perseguição que passa a sofrer por conta de suas posições. Essa divisão não sou eu que estou fazendo, e está bem demarcada no filme. Dessa forma, pode-se dizer que há uma rápida introdução, mostrando um pouco do passado do personagem e seu início na física teórica, a partir da entrada deste no Projeto Manhattan, o filme ganha uma montagem semelhante à que vemos, por exemplo, na preparação de A Origem, com todo o planejamento para a criação de Los Alamos - a cidade construída no Novo México onde viveram todos os envolvidos no projeto - e, claro, das bombas - todo esse segmento, é, ao meu ver, a melhor parte do longa, por ser a parte que mais interessa ao diretor. Com a repercussão das explosões no Japão para frente, vemos um filme-de-tribunal, no que tange a edição, intercalando os depoimentos de Oppenheimer com os do personagem de Downey Jr.. 

A passagem de uma seção à outra é bem feita e a separação é eficiente, no entanto, confesso que fiquei apreensivo por achar que haveria uma queda de ritmo e pode-se dizer que o tempo é sentido conforme a projeção ia se aproximando do fim, uma vez que o ápice de Oppenheimer ocorre, curiosamente, no meio do filme. 

O que segura esse ato final é, ao meu ver, além de um desenvolvimento e concentração em um conflito entre Oppenheimer e o senador Strauss - maniqueísta, mas eficiente -, é uma concentração maior na figura do protagonista, sua mente, suas contradições e conflitos internos. A atuação de Cillian Murphy é hipnotizante, invocando, de início, a inteligência, o charme e a inquietação de Oppenheimer para, aos poucos, desenvolvendo seus complexidades, a gravidade de sua ação, o sentimento de culpa, sem, contudo, deixar de lado as contradições, como sua neutralidade em relação ao bombardeio no Japão, que passa a assombrá-lo. 

Apesar de, contudo, abordar essas questões mais sensíveis, Nolan nunca busca investigá-las, fazendo algum tipo de mediação, o que torna seu protagonista um tanto raso, isto é, não vamos ao âmago de Oppenheimer, para entendê-lo, ou ao menos tentar entendê-lo. O efeito disso é que saímos sem saber muito sobre o personagem, a não ser o que está no texto e o que a performance de Murphy traz, principalmente sua sensibilidade. 

A representação feminina é um outro ponto interessante de se analisar. Ainda que tenhamos duas personagens importantes na trama, a de Florence Pugh e Emily Blunt, além de ambas não terem muito desenvolvimento, servem unicamente ao desenvolvimento do protagonista e a pontos-chave de sua história - e com a personagem da ótima Pugh participando de duas cenas de sexo, com uma delas sendo especialmente desnecessária.

Voltando a falar da música, o trabalho de Ludwig Göransson, em segunda colaboração com Nolan depois de Tenet, é um espetáculo à parte. Ela conduz a narrativa, a cadência das cenas - leia-se, auxilia no ritmo - e também serve para ditar as emoções presentes nas cenas, seja para engrandecer certos momentos, gerar tensão ou até evidenciar a gravidade de algo. Contudo, há algo à mais, ela também cuida da passagem de um segmento ao outro, nesse sentido, a trilha da primeira parte é mais poética, vibrante e enervante - em especial a que acompanha os preparativos para o primeiro teste da bomba -, com a da segunda claramente mais melancólica, principalmente. 

O trabalho de fotografia de Hoyte Van Hoytema também realiza uma função parecida de ditar o ritmo e nos aproximar dos personagens e seus sentimentos. O “aproximar” aqui é literal, pois os close-up’s constantes nas atrizes e atores, quase sempre com os fundos desfocados, criam uma conexão entre eles e o espectador, o mesmo ocorre com a câmera-na-mão, que conduz a cadência do filme ao mesmo tempo em que nos coloca nos cenários, debates e situações vistas em tela. (Ainda na fotografia, acho importante acrescentar um detalhe: a maneira como a presença física da bomba é trabalhada,  como se fosse um objeto alienígena, além de monstruoso, mas grandioso, da mesma forma).


As outras duas partes serão publicadas em separado e um pouco mais à diante, visto que terão spoilers. 


Por: Victor Braz


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