Anatomia de Uma Queda, de Justine Triet - Uma Análise
Ao final deste Anatomia de Uma Queda, de Justine Triet, produção francesa vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes e forte concorrente na temporada internacional de prêmios do cinema, lembrei-me de um grande filme que não vejo há tempos: A Caça, do dinamarques Thomas Vinterberg.
Fazendo a separação temática, é claro, com o longa estrelado por Mads Mikkelsen retratando um professor de jardim de infância repentinamente acusado de pedofilia por uma aluna, o que há em comum entre as obras, além do foco do impacto de um grande caso na vida dos personagens e em suas relações, é a questão do distanciamento a da direção enquanto figura mediadora, isto é, acompanhamos o caso, o processo, os pontos de vista diversos, duvidamos, mas não se faz juízo de valor.
A principal diferença, por outro lado, é que, se o filme de Vinterberg termina com um gosto amargo de que, para o personagem, o drama nunca vai acabar, aqui há uma tentativa de resolução. Se ela é boa ou não, é uma das coisas que serão discutidas aqui.
Parte 1 - Um intenso drama de tribunal
Uma relação mãe-filho é abalada quando a escritora Sandra passa a ser considerada suspeita pela morte do próprio marido, encontrado morto por Daniel, filho do casal e principal testemunha do caso.
Não sou familiarizado com o trabalho da cineasta francesa Justine Triet - que antes havia dirigido Sibyl em 2019, Na Cama com Victoria, de 2016, e A Batalha de Solferino, de 2012 - portanto não consigo fazer comparações com seus trabalhos pregressos. Contudo, confesso que estou à caça de seus filmes anteriores pois, além do destaque para a atuação de Sandra Hüller, acredito que a estrela de Anatomia de Uma Queda é mesmo Triet, a diretora e co-roteirista - dividindo a função com Arthur Harari, ambos vencedores do último Globo de Ouro de Melhor Roteiro.
Como falei no trecho inicial desse texto, aqui a câmera faz as vezes de intrusa, participando de cenas íntimas e cotidianas, mas também representando uma câmera de segurança, imóvel, em ângulo fechado. O papel que isso cumpre, para nós público é, ora de opressão - principalmente quando o ângulo vai se fechando e aproximando-se mais dos personagens - ora de contemplação, com o uso de planos longos e de pouco ou nenhum movimento. Já tecnicamente falando, enquanto os planos mais intrusivos são aqueles que nos colocam dentro dos acontecimentos, os mais imóveis servem para que o foco esteja concentrado no que é dito, principalmente nas sequências no tribunal - que serão melhor discutidas mais à frente. O resultado desses artifícios é uma obra intensa, mas igualmente melancólica.
Contribui para isso também a ausência parcial de trilha sonora. Ao que consta nos créditos, somente quatro músicas compõem o longa, sendo a dos créditos iniciais a única anti-diegética isto é, que é somente ouvida pelo público, com as outras dentro da ação, sendo ouvidas pelos personagens. O efeito disso é claro, com o foco estando nas atuações e nos diálogos, evidenciado a gravidade dos atos, o drama vivido, a crueza das cenas. Com isso, os sentimentos são produzidos através do trabalho do elenco, com a técnica a serviço deles.
Falando em elenco, o destaque total é mesmo para a alemã Sandra Hüller, que nos brinda com uma atuação que passa o amor de uma mãe, o desamparo e o desespero provocados pela situação que está vivendo, além de - o mais importante! - nunca permitir que abandonemos a dúvida se ela cometeu mesmo o crime. Conforme o tempo vai passando, e o julgamento vai avançando, os sentimentos da personagem afloram cada vez mais, com destaque para as cenas em que contracena com o marido - vivido por Samuel Theis. O filho do casal e segundo personagem com maior arco dramático, interpretado pelo ator-mirim Milo Machado Graner, também merece ter o trabalho ressaltado, justamente por receber a função de ser um segundo pilar na história - principalmente no terceiro ato do longa - à medida de que seu personagem enfrenta um forte dilema moral: condenar ou não a própria mãe.
Parte 2 - Anatomia de um roteiro
Mais do que um acompanhamento de um caso, Anatomia de Uma Queda trata de acompanhar uma parte da vida de uma família e um pouco de uma relação familiar em estado de crise
Considero que a dúvida seja um elemento importante para uma análise de Anatomia de Uma Queda, ainda que o “foi ou não foi” acabe não sendo o único e principal pilar de sustentação do roteiro de Triet e Arthur Harari. Voltando ao trecho de abertura deste texto, o processo de investigação e julgamento é importante, tal qual sua resolução. Porém, o que mais interessa é a marca dele no cotidiano e na relação de uma família. Nesse sentido, o ponto de interrogação mantido sob a personagem de Hüller tem como principal função a de abalar a fundação de confiança que uma criança tem com seus pais, além de, com toda a certeza, facilitar o marketing do filme para públicos maiores fora da comunidade cinéfila.
Essa incerteza que paira sobre a figura de Sandra também rende, ao meu ver, discussões cerebrais. E as sequências mais intensas no tribunal são as que mais me geraram interesse, considerando-as o ponto alto do longa, com debates que vão desde a relação artista e obra até a maneira como o machismo é usado como uma ferramenta de coação durante o julgamento. Contudo, conforme o filme vai chegando ao final, apesar da intensidade crescente, em determinadas cenas o ritmo cai vertiginosamente, dando a sensação de que a narrativa se estende mais do que o necessário.
Também considero que o fechamento do longa é problemático justamente por dar um desfecho à história pois, um final aberto, poderia render debates e discussões por parte do público, já que, ainda que haja um “final feliz”, ainda ficaria no ar a pergunta: “vai ficar tudo bem mesmo?” Aqui o final aberto representaria justamente o fechar das cortinas, de que a nossa presença enquanto público no cotidiano das personagens acaba ali. Um final mais condizente com uma experiência formidável de cinema.
Excelente reflexão.
ResponderExcluirMarco Antônio Braz
ResponderExcluirVictor,seu texto é perfeito.Perspicaz, pertinente,claro.Temos aqui um futuro .(ou já atual) crítico de arte.Raramente se vê um jovem tão atento e uma crítica tão transparente,.Sou sua fã.
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