Guerra Civil, de Alex Garland - Uma Análise
Guerra Civil, o novo filme de Alex Garland, está no debate público em duas frentes: por sua temática e contexto de lançamento.
O nível da trama tem um foco maior nos EUA, em mais um ano eleitoral atípico, com nova disputa entre Trump e Biden, retratando não somente uma guerra em “solo americano”, o que é simbolicamente forte, principalmente após o 11 de setembro de 2001, mas uma guerra entre cidadãos estadunidenses. O contexto possui maior amplitude e principalmente atinge o Brasil, que passa por uma situação de crise nas instituições políticas, com um governo com baixa taxa de popularidade e em claro conflito com o poder legislativo, além de uma população dividida politicamente, entre outras problemáticas.
O filme abraça isso tudo, servindo enquanto um espelho das aflições que marcam (parte) do mundo contemporâneo e que nos traz uma pergunta, entre várias, muito importante: o que seria do mundo como o conhecemos se pararmos de acreditar em nossas instituições - políticas, de mídia, na academia, na cultura - e não mais nos identificarmos enquanto nação?
Parte 1 - Uma mulher com uma câmera
Um grupo de fotojornalistas cruza parte do território estadunidense até Washington, D.C., epicentro de um conflito armado entre o Governo dos Estados Unidos da América e estados secessionistas liderados pelo Texas e a Califórnia, com uma missão: conseguir uma entrevista com o Presidente.
O cinema do britânico Alex Garland é marcado por uma dualidade entre humanidade versus natureza e por histórias com protagonistas mulheres que, de alguma forma, devem lutar contra traumas passados e questões pessoais. A Natalie Portman de Aniquilação enfrentava o desconhecido em uma terra desolada para descobrir sobre seu marido desaparecido, ao passo que a Jessie Buckley de Men - As Faces do Medo tinha de lutar contra as memórias de um relacionamento abusivo materializadas nos homens bizarros e invasivos da pequena cidade que está visitando.
Essas situações marcam um ponto de virada em suas vidas e uma tomada de consciência, principalmente.
Em Guerra Civil o protagonismo se divide entre Kirsten Dunst e Cailee Spaeny, que devem defrontar, cada uma à seu nível, as dores do ofício de ser jornalista de guerra, com a primeira, mais experiente, já anestesiada por anos de contato com a violência da humanidade contra si mesma, e a segunda, uma jovem iniciante, tendo que saber se aproximar do horror deixando o coração de lado.
Saber distanciar-se é a regra. Mas a que custo?
Partindo disso, é importante frisar: ainda que seja vendido como tal, Guerra Civil não é um filme de ação nem um thriller político, e sim um filme de estrada focado nos dramas das personagens e em que a guerra é um cenário e uma situação na qual o grupo principal deve sobreviver e reagir á.
Dessa forma, e retornando a questão do protagonismo, ainda que Kirsten Dunst tenha muito destaque, a detentora do ponto de vista e que ganha maior desenvolvimento é a Jessie de Cailee Spaeny. Seu arco é o do amadurecimento em um mundo corroído pela raiva, ódio e divisão, e também o de um sonho: seguir os passos de sua ídolo, vivida por Dunst, e tornar-se jornalista de guerra, em uma realidade marcada pela pós-verdade e em que o real é objeto de dúvida. Sua jornada passa por essa busca de retratar o mundo distorcido em que vive. E quanto mais progride nisso, mais se distancia. As imagens de violência e angústia que presencia, assim, vão tendo seus sentidos e sentimentos abstraídos, virando apenas um objeto para registro.
Parte da discussão que Garland medeia aqui é sobre isso: como lidar com o horror de forma frontal e mesmo assim ainda encará-lo enquanto o que é: horror?
Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, recentemente também tratou sobre isso: como saber que estamos diante do mal quando ele se torna parte do cotidiano?
Outro ponto importante aqui é que, ao construir Guerra Civil como um filme de estrada, permite uma visão também contemplativa sobre esse horror em um escopo mais amplo, ao mostrar cidades completamente vazias, outras em que as pessoas ignoram o conflito e vivem “normalmente”, e também a natureza, completamente alheia aos nossos problemas. Essa aparente contradição tem uma função de explicitar o forte discurso anti-guerra de Garland e de utilizar o mundo do filme enquanto um espelho distorcido do nosso, uma possível visão do futuro.
A importância do jornalismo, e do fotojornalismo, sobretudo, também entra aí: é através das lentes da câmera que se documenta em imagem aquilo que está posto na realidade. A lente, porém, demanda ser utilizada por alguém, e como todos somos frutos da sociedade, da política e de vivências, a imagem também irá carregar isso.
Parte 2 - Uma fantasia ideológica?
A partir disso, é necessário falar que parte das críticas em relação ao filme é de que Garland busca um discurso anti-guerra ao mesmo tempo que tenta realizar uma narrativa sem ideologia. Não apolítica, mas sim “neutra” ideologicamente.
Já para tirar essa questão da frente: Se nem mesmo o detergente é neutro, como um ser humano, uma criação social e, veja só, política, pode sê-lo?
De fato, o diretor e roteirista desenvolve aqui um conflito armado urbano que tem em sua origem questões contemporâneas como a imigração, insatisfação com o sistema político e a desumanização do outro - não somente a vista em guerras, mas quando, por exemplo, retiramos a humanidade de uma pessoa ao chamá-la exclusivamente de “bandido” e dizendo que não merece viver por conta disso - sem, contudo, evidenciar que essas questões possuem raiz político-ideológica e nem construir um painel sócio-político-econômico para o seu pleno entendimento. Assim, como em Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, Nascido Para Matar, de Stanley Kubrick, ou outros filmes de guerra, o cenário já está posto. Basta que acompanhemos os personagens nele.
Conectado isso tudo, a decisão de subtrair qualquer tipo de contexto da trama, além de ser certamente mercadológica - em óbvio desejo por parte do estúdio de abarcar o maior público possível, o que poderia não ser viável dado o alto grau de polarização visto no debate contemporâneo -, é para a amplificar o discurso anti-guerra e também responder aquilo que trouxe na parte final da introdução.
Se um filme é produto de seu tempo, também está agarrado a um contexto específico. Agora, trata-se de um ótimo longa, e de muita importância. Se ele sobreviverá ao tempo…aí é outra história.
Por: Victor Braz.
👏👏👏❣️
ResponderExcluirÉ incrível como você analisa o filme de forma simples, permitindo que a gente visualize as cenas, mesmo sem tê-las visto!
ResponderExcluirÉ incrível como você comenta o filme de forma simples, a ponto de a gente visualizar as cenas, sem tê-las assistido!
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