Acossado
O quão importante é a linguagem formal de um filme, para sua estrutura, feitura e gênero? Ou melhor, o que pode definir um? E o que acontece quando você muda tudo?
Um dos maiores e mais
influentes ciclos cinematográficos de todos os tempos, a Nova Onda –
Nouvelle Vague, no francês – buscava trazer um frescor para o cinema da
época. Críticos na seminal revista Cahiers du Cinéma, nomes como
François Truffaut, Eric Rohmer, Jean-Luc Godard e Claude Chabrol justamente
clamavam por obras autorais, de estilo próprio e ousadas, aos moldes do que era
feito, por exemplo, por Alfred Hitchcock nos Estados Unidos. Assim, indo à
contramão das produções francesas dá época e anos predecessores – que contavam
sempre com um grande aparato, sendo concebidos num mesmo sistema e apostando em
fórmulas, ainda que eficientes -, esses críticos e, por consequência, outros
apaixonados por cinema como Agnés Varda, passaram a envolver-se na produção de
filmes, buscando uma voz própria e que ia contra ao usual.
Acossado, de
Godard – baseado em argumento escrito por Truffaut -, é um dos que melhor
traduz o sentido do movimento, uma vez que traz, em toda a sua estrutura, a
quebra de paradigmas e as mudanças na linguagem de cinema pela qual vinha ser
conhecida a Nova Onda futuramente.
Lançado em 1960, a trama
acompanha Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), um criminoso que, na cidade de
Marselha, rouba um carro e escapa. No caminho, é parado por um policial e, no
desespero, o mata, abandonando o carro, arma, e tendo que continuar a fuga a
pé. Corta-se, então, de sua corrida num descampado já para Paris, de maneira
rápida e descompromissada. Lá, já o vemos na avenida de Champs-Élysées, onde encontra
Patricia Franchini (Jean Seberg), uma jovem norte-americana com quem logo
percebemos que já teve um caso. Ela vende jornais na rua e sonha em ser também uma
jornalista. Ele, por outro lado, tem outros planos: convencê-la a acompanhá-lo a Itália.
Em nenhum momento, porém, contando-a de que é um foragido da justiça a procura
de dinheiro.
Pode-se afirmar que se
trata de um thriller de perseguição, entrecortado por um romance – ou o
contrário, uma vez que a história desenvolvida em torno dos dois ganha o
primeiro plano muito rapidamente. No entanto, o que se conclui tematicamente
não pode ser dito do que se percebe num sentido de linguagem, e as sensações
que ela traz. O uso do jazz, por exemplo, traz um ar elegante e suave para a
narrativa, ainda fornecendo um tom frenético a uma ou outra cena, o que substitui
o senso de urgência já que, ainda que saibamos que o rosto de Michel está nos
jornais, seu nome em letreiros eletrônicos e que há um detetive no seu encalço,
ele permanece alheio a sua condição de fugitivo por boa parte da trama. Também,
a excelente química entre os dois personagens é crível e verdadeira, sendo realçada
por conta de diálogos quase que completamente feitos na hora, ou improvisados.
Mas, por outro lado, seu encerramento combina o tom leve típico de um filme
romântico com o peso de um suspense de fuga. É, nessa mistura, – que não cede
ao que se esperaria de uma narrativa nesses moldes – único.
Soma-se a essa singularidade também a maneira como trabalha as técnicas e a linguagem do cinema. Ao optar por realizar um longa de maneira direta – isto é, câmera na mão, emprego de luz totalmente natural e improviso (opções feitas pelo diretor que, entre outras coisas, demonstravam que uma obra cinematográfica não necessita de roteiros extensos e equipamentos caros para ser realizada) -, Godard retratava o processo do fazer cinematográfico dentro do filme. Isso se traduz perfeitamente na clássica cena do carro - onde Michel e Patricia conversam e, por boa parte dessa sequência, vemos somente ela, de costas para a câmera: além do emprego dum ângulo atípico, ainda temos, acima de tudo, uma mudança extrema quanto ao papel e uso da edição: a partir do momento em que se acompanha um filme que se constrói à medida em que a projeção prossegue, a edição deixa de servir como a costura entre diversos momentos, tornando-se, assim, uma quebra em um pequeno espaço de tempo, como se piscássemos. Nesse sentido, em instantes em que nada acontece, Godard emprega o “jump cut”, um salto, aquele segundo que nos lembra o que estamos vendo: um filme.
Tudo isso, claro, compila-se
na sequência final: acompanhamos Michel correndo da polícia, caindo no chão, e
ainda que vejamos pessoas reais circulando pelo espaço, elas não reagem ao que
se passa, estão em segundo plano, o foco encontra-se nele. E é ai em que
percebemos que, ainda que “ocorra” na rua, um filme somente pode “acontecer” no
cinema.
Por: Victor Braz
Visto no Sesc Digital,
onde está disponível até o dia 22 de janeiro.
Deve ser incrível, mesmo, esse filme! Seus comentários precisos sempre me levam a assistir.
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